Numa quase inacreditável inversão de valores, empresas se mobilizam para garantir aos seus funcionários direitos de aborto derrubados pela Suprema Corte americana.

Direitos e justiça formam uma espécie de intersecção para o ápice da liberdade. Direitos nas relações sociais ou nas relações econômicas são reconhecidos como tal depois de legitimados por leis ou tribunais. A conquista dos direitos é o principal indicador de evolução da humanidade. Na sociedade evolui-se, por exemplo, para o direito de voto às mulheres e, mais recentemente, de uniões homoafetivas. Nas relações econômicas, evolui-se do capitalismo selvagem para o capitalismo de stakeholders.

Nos tempos do capitalismo selvagem, movido pelos motores a vapor, teares mecânicos e os grilhões da Primeira Revolução Industrial, os stakeholders do chão das fábricas viram passar várias décadas até a justiça legitimar direitos básicos, como a limitação da jornada diária de trabalho ou a liberdade de ser organizarem em sindicados. A Primeira Revolução Industrial começou na segunda metade do século XVII e a organização sindical dos operários, na Inglaterra, só foi legalizada a partir da segunda década do século seguinte. Donos das fábricas opunham-se aos direitos das pessoas que constituíam a força de trabalho e, aparentemente, tinham a justiça do seu lado.

Da Inglaterra do século XVIII para os Estados Unidos do século XXI muita coisa mudou, e a reação de numerosas empresas americanas diante da decisão da Suprema Corte que derrubou o direito ao aborto, é um exemplo da evolução para o capitalismo de stakeholders. Desde 1973 as mulheres tinham a liberdade de fazer aborto em qualquer Estado americano. Com a decisão da Suprema, alguns Estados ainda poderão manter este direito, mas na maioria deles o aborto é considerado crime, e pelo qual pode ser processada qualquer pessoa que ajudar ou incentivar a realização ou indução de um aborto, inclusive o motorista que levar a mulher a algum local para este procedimento. Em Oklahoma, por exemplo, estão previstas multas de até 100 mil dólares e 10 anos de prisão. 

Imediatamente após a confirmação do resultado da votação da Suprema Corte, gigantes globais, incluindo Disney, JP Morgan, Meta, Goldman Sachs, Levi Strauss e Microsoft, saíram a público para informar que vão cobrir despesas de viagens de suas funcionárias que trabalham em Estados onde o aborto é proibido e precisem se deslocar para fazer aborto com segurança em qualquer outro Estado do país. Nos dias seguintes a lista foi aumentando com empresas de diferentes porte ou setor, de sites de namoro a varejo de artigos esportivos e marcas ícones, como Netflix, Mastercard e Starbucks, entre outras, atualizando suas políticas de benefícios de saúde para cobrir despesas de viagens de funcionários que precisam sair do estado para assistência médica reprodutiva.

A justiça, ao invés de expandir, tirou direitos. As empresas, que poderiam tentar tirar algum proveito da situação, atuaram para preservar os direitos dos empregados, e algumas de forma ostensiva. Uber e sua rival Lyft decidiram que vão cobrir despesas dos seus motoristas que forem processados pela lei de aborto do Texas. A Patagonia, referência em vestuário para esportes e aventura, além de cobrir custos com viagens e despesas médicas passou a oferecer aos funcionários treinamento e fiança para aqueles que protestam pacificamente por justiça reprodutiva.

“Trágico erro”, como a definiu o presidente americano, Joe Biden, a decisão de Suprema Corte era esperada desde o início de maio quando o site Politico vazou um rascunho inicial de votos da maioria da Suprema Corte antecipando o que iria acontecer. No mesmo dia deste vazamento a Amazon, com mais de um milhão de empregados, anunciou que forneceria ajuda de até 4.000 dólares para cobrir custos com tratamentos médicos de funcionários que tenham de se deslocar mais de 160 quilômetros de suas casas.

Antes de a notícia vazar, várias empresas, entre as quais Apple, Salesforce, Citigroup e Yelp, já haviam se manifestado contra as legislações restritivas ao aborto ou anunciado novas políticas de benefícios para permitir acesso a aborto legal e seguro para seus funcionários. Poucas horas antes de a decisão da Suprema Corte se tornar pública, a Alaska Airlines divulgou memorando interno aos funcionários informando que continuaria a oferecer benefícios de seguro de saúde incluindo “reembolso de viagens para certos procedimentos e tratamentos médicos se eles não estiverem disponíveis onde você mora”, acrescentando que “a decisão de hoje da Suprema Corte não muda isso”.

Ao seguirem este caminho as empresas correm riscos. Juristas já alertam que o oferecimento de reembolsos para viagens relacionadas ao aborto pode gerar represálias de grupos conservadores, além de processos judiciais. Quarto maior banco do país, o Citigroup está sendo ameaçado de perder o contrato de fornecimento de cartões de crédito para o Congresso por pressão de parlamentares republicanos inconformados com a reação do banco em defesa dos direitos reprodutivos das funcionárias.

Alguém poderia dizer que as empresas assumiram esta posição, inclusive de correr riscos, só porque estão preocupadas com a manutenção da sua força de trabalho. Mas Walmart e McDonalds, os dois maiores empregadores dos Estados Unidos e que, em tese, poderiam ter maiores dificuldades com recrutamento e retenção de mão de obra, até agora não assumiram compromissos de fornecer recursos para que seus funcionários tenham acesso ao aborto.

Apesar de retrocessos como a decisão da mais alta instância de justiça da maior economia do mundo há, sim, uma agenda social sendo colocada em pratica por empresas comprometidas com os 10 Princípios do Pacto Global e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. São empresas que se esforçam para assegurar direitos, promover inclusão, diversidade e, principalmente, mostram resiliência nos momentos de adversidade em que a justiça, fazendo o oposto do que se espera dela, derruba direitos já conquistados pela sociedade.